diário, escritos, rascunhos, pulsações de uma vida quase completa

domingo, 10 de novembro de 2019

A queda.

Eu não desejo somar.
Sempre quis dividir.
Pois tudo que há em mim é demais.
Que tanto há em mim?
Sou todo amor.
E ao mesmo tempo sou muita ausência.
De tanto que amei.
De tanto que não me amaram.
Quando tudo passa a ser nada.
Quando o preenchido passa a ser o vazio.
Os braços que não te envolvem.
Os pés que não caminham juntos.
Os olhos que não vêm juntos o tempo passar.
Não envelheceremos juntos.
Não dividiremos o mesmo leito.
Não, não compartilharemos nada.
Pois sempre fui eu.
Eu que sempre estive.
Saltei no abismo, como sempre fizera.
Sem redes, sem amarras, sem proteção.
E no átimo de segundo que o voo deixou de ser voo e encontrei o solo tu percebi.
Me dei conta que tudo fora ilusão.
Que realmente nunca estivestes lá.
Tudo foi um delírio meu.
Tudo não passou de uma mera projeção do meu inconsciente.
E neste instante tudo se transformou.
Passei a ser completamente vazio.
E findo.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Testamento

Quando eu morrer só digam de mim uma coisa: que amei.
Que muito amei.
Não quero flores.
Não espero dores.
Não preciso de lágrimas.
Muito menos digam que fui bom.
Não me façam pesar na subida.
Para onde vou pouco importa.
Não me velem também.
Tenho horror.
Que seja tudo festa.
Riam. Por favor.
Não lamentem.
Com toda certeza eu estarei rindo dos que chorarem.
Meus livros podem dar.
Meus discos também.
Não guardem nada físico.
Se quiserem guardem lembranças.
Que com o tempo serão apagadas.
E eu serei esquecido.
É isso que desejo.
Não me criem um lugar de culto.
Queimem-me.
E o pó lancem ao mar.
Quero me espalhar com o vento.
Me misturar com as águas.
E aos que amei bastará saber que uma brisa que lhes tocarem a face ou uma gota de chuva que lhes caírem na fronte terão uma milésima parte de mim.
Estarei mais uma vez lhes dizendo que amei.
Que muito amei.



sexta-feira, 5 de julho de 2019

Lentamente

Porque me falta o amor vou morrendo lentamente.
Porque não sei viver sem tê-lo.
Porque me fogem entre os dedos as forças vou minguando.
Porque um dia eu pensei que tudo seria diferente hoje me dói.
Por que tantos amores passaram?
Porque como as estrelas se apagam um dia eu também apagarei.
Porque falta o amor.
São tantos porquês e nenhuma resposta.
Ou porque são muitas resposta que eu não aceito.
Me falta o amor por quê?

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Cais

Andei mundos, longos caminhos em busca de algo.
Em busca de alguém que me preenchesse o vazio.
Voltei ao lugar de origem.
Voltei como saíra outrora: vazio.
Todos os corpos por onde passei ficaram para trás.
Eu sempre fui passagem.
Travessia para passantes.
Meu corpo sempre foi caminho.
Nunca porto.
Atracar em meu cais nunca puderam ou apenas não quiseram.
Ancorar nas águas profundas da minha alma ninguém tentou.
Sempre passagem, sempre caminho.
Marinheiros vadios que passearam por meu corpo preferiram aportar noutros corpos.
E eu fiquei, recebendo as pancadas do mar.
Vazio.

domingo, 16 de junho de 2019

Pouco importa

Pouco importa o que virá.
Onde esse caminho vai dar?
Quando chegaremos a algum destino?
Pouco importa o futuro, amanhã já é futuro.
E tudo é incerto.
Eu quero o agora.
Quero-te neste instante.
Em que minha língua percorre toda a extensão do teu corpo.
A provocar-te arrepios e prazer.
Estes momentos em que nossos corpos se enroscam.
E quando cansado tu adormeces ao meu lado.
Tua respiração fica mais profunda e te entregas ao sono.
Enquanto eu vigio teu corpo adormecido e nu.
Isto é o que vai ficar.
Está aí o que importa.
Reside nestes momentos irrepetíveis o que é importante.
O resto é firula.
Não quero enfeites, badulaques.
Quero-te cru, osso.
Peles, carnes, humores, sangue e suor.
Assim já me basta.



sexta-feira, 8 de março de 2019

Breve

Onde reside a ternura?
No teu leve sorriso.
Onde te guardarei?
Nas memórias dos doces carinhos.
Em que parte de mim ficarás?
No meu todo.
Onde seremos dois novamente?
Espero que em breve.
De uma breve piscadela aos mais singelos toques de mãos vivemos pequenos instantes, fotogramas, de uma rápida e doce sintonia.
Ao fundo a Voz, aquela que nos leva da lama ao céu.
Sinto ainda teus dedos entrelaçados aos meus, com a brisa do mar a nos tocar levemente as cabeças de raros fios.
Poucas palavras.
Para quê tanta verborragia se nossos olhos diziam mais do que as palavras pudessem alcançar.
Te guardo em mim como uma linda lembrança de fim de verão.
Quero também ser para ti uma boa memória.
Um pequeno confete que sobreviveu ao carnaval.
E isto bastará.
Me saber parte de tuas lembranças.
De nomes, iguais, de gostos parecidos. Me guarda. Pois eu já te guardo.
Até.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

O silêncio, a solidão, a morte.

A solidão tem um cheiro forte.
Um gosto de não saber.
A solidão pede silêncio.
A solidão é o silêncio.
Há dentro de mim uma euforia.
Um corre-corre que não cessa.
Mas o silêncio está aqui.
Penetra-me as carnes.
Enrijece-me as partes.
O silêncio, que é a solidão, paralisa-me.
O seu cheiro entra pelas narinas de forma sutil.
E quando vejo-me já não sou mais eu.
O meu corpo já não é o meu.
Envelheci. Entristeci.
Entretanto há ainda uma confusão dentro de mim.
Que é a mesma, que será sempre a mesma.
Um barulho ensurdecedor que me acompanha por toda a vida.
Fora não. Fora reinam todas as tristezas que colecionei pelo caminho.
Todas as infindáveis mágoas que feriram-me a derme.
O cheiro é como o cheiro do éter que se espalha pelo ar fazendo-o evaporar.
Fazendo evaporar em mim o que resta de felicidade e de brilho no olhar.
Centelhas de amores que um dia cultivei já estão se apagando.
Estão morrendo.
Enfraquecendo como meus músculos.
Apodrecendo como minha cabeça.
Estão morrendo. Como eu morro um pouco a cada dia.