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terça-feira, 25 de julho de 2023

Um Sábado em 30: 60 anos de um clássico do Teatro Pernambucano

          


 
           


Hoje remexendo em uns arquivos fotográficos me deparei com umas imagens do espetáculo Um Sábado em 30 montado pelo Teatro de Amadores de Pernambuco. E me lembrei que neste mês de julho, mais precisamente no último dia 08, completaram-se 60 anos da estreia desta montagem.

Quem me conhece, quem já conversou um pouco comigo sabe da verdadeira loucura que eu tenho pelo TAP e por Um Sábado em 30. O Teatro de Amadores e suas histórias contadas por quem viveu nos bastidores do imponente Teatro de Santa Isabel fazem parte da minha vida desde que eu me entendo por gente. Minha saudosa avó materna, Cecy, sempre fez questão de manter viva a memória de seu pai, Francisco Miranda, ou simplesmente Chico Miranda. Meu bisavô foi mordomo do Teatro de Santa Isabel, primeiro contrarregra do Teatro de Amadores, secretário particular de Dr. Valdemar - nas histórias de minha vó Valdemar de Oliveira, o grande homem de Teatro, sempre foi Dr. Valdemar -, ela gostava, particularmente, de falar da honestidade de Chico Miranda e da confiança que Dr. Valdemar tinha nele. Era ele quem sempre ia buscar as joias (verdadeiras) que eram emprestada pela joalheria de Seu Brito (também ator do TAP), o diretor do TAP só confiava esta missão ao meu bisavô. Em seu livro de memórias Mundo Submerso, Valdemar deixou registrada as seguintes palavras:

 

Outro que nos fez tremenda falta foi o humilde e eficiente Francisco Miranda, meu braço direito, durante 12 anos, na direção do Santa Isabel. No TAP, era uma espécie de factótum, em todas as eventualidades: manejava a linha e a agulha, pregava, pintava, trainelava, dominando o martelo, a tesoura, o pincel como o mais eficiente profissional; estava na contrarregra e nada nos faltava; corria à bilheteria, fazia contas, recebia e pagava, tudo em ordem; colecionava recortes, fazia lançamentos, organizava balancetes, estava presente a tudo. Pois, se havia um camarada, de nome desconhecido, que confeccionava certo adereço e trabalhava para as bandas do Cordeiro ou de Iputinga, nada se sabia ao certo, Chico Miranda ia lá, na manhã seguinte, descobri-lo. De tarde quando me aparecia, já trazia o homem consigo, como uma rês laçada. Conheceu, conosco, quase todo o Brasil, em repetidas excursões. E era de uma fidelidade de cão. Se alguma vez confiei cegamente num homem, esse homem foi Chico Miranda, pobre e honestíssimo.

    Doente, visitei-o, ao partir para uma viagem ao estrangeiro. Apertou-me a mão, num pressentimento terrível. E chorou como se definitivamente se despedisse de mim. Com efeito, fora uma despedida para sempre. Sobre seu túmulo, digo-lhe, hoje, a maior verdade: nunca o esqueci. E jamais encontrei quem o substituísse.[1]

            Meu bisavô morreu em uma terça-feira de carnaval, em 1960. Minha avó contava que seu velório foi cheio de gente de teatro, de gente fantasiada que saía dos bailes para ir se despedir daquele homem, calado, que tanto amou o Teatro de Santa Isabel, que tanto se dedicou ao Teatro de Amadores. Ele foi, dignamente enterrado em um dos túmulos destinados ao pessoal de Teatro no Cemitério de Santo Amaro. Mas sua memória permaneceu viva, sua história continuou com seu filho Jair Miranda, que foi um dos maiores cenotécnicos que esta cidade do Recife já teve, profissional respeitadíssimo no meio, tendo sido também diretor do mesmo Teatro de Santa Isabel e do Teatro do Parque. Conto tudo isso, como um preâmbulo para falar da minha ligação umbilical com o TAP e, por consequência, com Um Sábado em 30.

            Esta montagem, estreada em 08 de julho de 1963, há sessenta anos atrás, tornou-se um clássico, além de ser uma montagem, que literalmente passou de geração em geração. Quando o pano do Teatro de Santa Isabel subiu para que o TAP entrasse em cena com o texto de um autor pernambucano, os jornais da cidade já haviam noticiado bastante sobre a próxima estreia dos Amadores: “A peça de Luiz Marinho Falcão, que acaba de ser premiada (1º lugar) no concurso anual pela União Brasileira de escritores, secção [sic] de Pernambuco, “Um Sábado em 30”, segundo se afirma será montada pelo Teatro de Amadores de Pernambuco.”[2]. Até aquele momento, Luiz Marinho Falcão Filho, era um dramaturgo ligado do Teatro de Cultura Popular. Que já havia montado duas peças suas, A Derradeira Ceia (1961) A Incelença (1962), direção de Luiz Mendonça. O TCP, surgido no seio do Movimento de Cultura Popular, criado em 1960 e esfacelado após o golpe militar de 1964, era uma espécie de contraponto ideológico ao pensamento do TAP, assim também era o Teatro Popular do Nordeste, encabeçado por Hermilo Borba Filho. Os Amadores eram um grupo da elite produzindo arte para a elite.

Luiz Marinho nasce no interior de Pernambuco, Timbaúba, ao pé da serra dos Mocós. Constrói sua dramaturgia a partir, sobretudo, de um universo de crendices, violeiros, vaqueiros, cegos de feira, capitães de fandango, cangaceiros e outros tipos locais, com os quais toma contato em sua infância e adolescência interioranas. Autor de outros textos, como A Derradeira Ceia, A Incelença, A Afilhada de Nossa Senhora da Conceição, Viva o Cordão Encarnado e A Promessa.[3]

Apesar de o texto ter sido premiado em 1963, Marinho já o havia concluído em 1960, quando entregou-o a Valdemar de Oliveira, que fez algumas sugestões ao autor, sugestões que deram a forma final ao texto, encenado e premiado em 1963.

Desde aquele 08 de julho de 1963, Um Sábado em 30, ligou definitivamente Luiz Marinho ao TAP, que posteriormente montou A Incelença e A Afilhada de Nossa Senhora da Conceição (1973), A Estrada (1993), além das inúmeras remontagens do clássico Um Sábado em 30.

A peça de Marinho, passada em uma antessala de jantar de uma casa de uma senhor de engenho na cidade Timbaúba, tendo como pano de fundo os acontecimentos da Revolução de 1930. “Praticamente, não há enredo. Ou o enredo se apresenta “aos pedaços”, com encadeamento dramático não rigoroso”[4]. Inegável que Um Sábado em 30 é recheado das memórias de menino timbaubense de Marinho, como o próprio afirmou:

Quando menino, tinha o gosto, pouco comum, de andar pela cozinha, misturado com os empregados e de passar horas escutando-os conversar. Muitas vezes desejei ser do mato e participar daquelas histórias, daquelas pelejas por eles contadas. Agradava-me, sobretudo, o seu linguajar e introduzia-o em minhas palestras com frequência tal que deu trabalheira imensa a minha família corrigir-me. Aos sábados ninguém me arredava da cozinha. Era o dia em que chegavam, do mato, para a feira, parentes de empregados que iam ‘assistir’ lá em casa. [...] Outra intenção não tive, ao escrever esta pecinha, a não ser evocar um pouco, um sábado lá em casa e homenagear aquela gente que eu quero muito bem e que anda por aí dispersa sem que jamais possa revê-la, novamente.[5]

            A tal pecinha, a que Marinho se refere, tornou-se um clássico, desde sua estreia com o elenco formado por Diná de Oliveira (Sá Nãna), Lêda Jácome Sodré (Joana), Reinaldo de Oliveira (Chico), José Sylvio Custódio (Julião), Sulamits Lira Santos (Leninha), Elaine Cavalcanti Soares (Zefa), Ruth Rosenbaum (Filó), Norma Corrêa de Almeida (Dona Mocinha), Antonio Brito Miguel (Seu Severiano), Vicentina Freitas do Amaral (Quitéria), Romildo Halliday (Major Paulino), Nair Brito Filha (Luzia), Carmela Mattoso (Maria das Mercês), Tereza Cristina Vieira de Melo (Maria de Jesus), Claudio Basbaum (Romeu), Luiz Carlos Nunes Machado (Gustavo), Adhelmar de Oliveira (Seu Quincas), José Maria Marques (Vasco) e Cladira Hallyday (Ama), com direção, cenário e figurino de Valdemar de Oliveira.

            Embora tenha sido bastante criticada pela imprensa local, por ser demasiado acentuado o teor hilário do texto, tornando-o uma caricatura, quase uma caricatura sentimental, como havia sido a montagem de Onde Canta do Sabiá de Gastão Tojeiro dirigida por Hermilo Borba Filho para o TAP em 1958. É como se Valdemar tivesse transformado o texto de Marinho numa comédia de costumes à la Martins Pena, tornando-se irrelevante os aspectos mais sérios do texto, como a “tensão de classe” ou a crítica àquela sociedade interiorana da década de 1930.[6]

            Mesmo tento sido severamente criticada a montagem passou à história como um fenômeno. Levada à cena pelo TAP por 29 anos ininterruptos, excursionando por diversos estados do país. Sendo remontada quase anualmente entre 1992 e 2008. Leva à cena nos momentos comemorativos do TAP, inauguração do Nosso Teatro (1971), na reinauguração do Nosso Teatro, já rebatizado de Teatro Valdemar de Oliveira (1982), após o incêndio que destruiu a sede do grupo (1980), nas comemorações do cinquentenário do TAP, nas comemorações do centenário de nascimento de Valdemar de Oliveira (2000), nas comemorações dos 70 anos do TAP. Enfim, desde a noite de estreia a peça de Luiz Marinho está intrinsecamente ligada à história dos Amadores.

Além disso, Um Sábado em 30, tornou-se uma coisa espécie de herança de família, para não negar as raízes em que estiveram fincadas a ideologia do grupo desde sua fundação em 1941. Nas diversas remontagens, a peça chegou a reunir 3 gerações de uma mesma família no palco. Alguns começaram interpretando crianças, passaram às personagens adolescentes, às jovens empregadas da casa, até chegar a dona da casa, como aconteceu com Renata Phaelante, que começou interpretando a menina Leninha, passou à uma das filhas adolescentes da casa, depois interpretou por longo tempo Filó, a empregada e por último, recebeu a chave da casa de Dona Mocinha das mãos de Geninha da Rosa Borges que passava simbolicamente na entrega da chave a personagem Dona Mocinha que havia interpretado em várias remontagens à Renata que passaria a defendê-la dali em diante. Caso mais curioso é o de Reinaldo de Oliveira, que por mais de 50 anos interpretou a mesma personagem, Chico, tendo ao longo da carreira da peça atuado ao lado de sua mãe Diná de Oliveira, que interpretava, possivelmente, a mais genial de suas criações no palco, Sá Nana. Reinaldo ainda atuou ao lado de sua esposa, Dulcinéia de Oliveira, de sua filha Dinazinha, de sua filha Patrícia, de sua neta Júlia.

Sá Nana e Diná


            O papel de Sá Nana, a espevitada velha criada da casa de Seu Quincas de Dona Mocinha, coube a Diná de Oliveira, a primeira dama do TAP. Papel que ela desempenhou até meados das década de 1990, quando por motivos de saúde precisou se afastar do palco.

            Desde a estreia em 1963, a interpretação de Diná para Sá Nana foi destaca pela crítica. Como apontou Joel Pontes:

Encontro, então, Diná de Oliveira num dos seus trabalhos mais perfeitos, precisa nas réplicas e inflexões – as suas inflexões tão exatas de nordestina, que noutras ocasiões se atritam com a personagem e que, nesta, alcançam efeitos cômicos que são também verdadeiras reproduções da realidade.[7]

Quando de uma excursão do TAP ao Rio de Janeiro, o crítico Yan Michalski apontou as qualidades de Diná na interpretação de Sá Nana:

Grande parte dessa graça deve-se à presença de Diná de Oliveira, uma velha senhora como teatro brasileiro não as possui mais. Animadíssima, maliciosa ao extremo, conhecedora profunda dos macetes através dos quais um ator pode valorizar ao máximo um efeito cômico, ela conquista de saída, e merecidamente, a simpatia da plateia e as honras da noite.[8]

A atriz que já havia dado vida a Bernarda Alba de Lorca, a Madame Clessi de Nelson Rodrigues, parecia ter encontrado a maior personagem de sua vida, a personagem que a consagraria junto ao público, chegando quase a confundir-se com a atriz. Sá Nana, inclusive, foi tão forte na vida de Diná que era subindo ao palco para interpretá-la que conseguiu superar a perda de seu companheiro de vida e de teatro Valdemar em 1977. “Ela me domina. Foi ela quem me arrastou de volta ao palco e me fez descobrir que em mim existem duas Dinás: uma que chorava e outra que, retornando à cena, redescobria fascinada o idealismo de Valdemar”[9].

Diná foi substituída por Maria Paula, a partir de 2000, quando TAP retornou ao seu clássico espetáculo para dar início às comemorações do centenário de seu fundador Valdemar de Oliveira. Reinaldo de Oliveira, que a esta altura já havia assumido a direção do espetáculo dizia que tomou um grande susto quando viu Maria Paula caracterizada pela primeira vez de Sá Nana tal a semelhança dela com a Sá Nana de Diná. Nas últimas apresentações do TAP de Um Sábado em 30, Sá Nana foi interpretada pela atriz Isa Fernandes. 


O meu Sábado em 30


Não me lembro a data exata em que assisti a primeira vez Um Sábado em 30, possivelmente na temporada de 2000 em comemoração aos 100 anos de Dr. Valdemar. Mas sei que de imediato aquele espetáculo me tomou por completo. Na última vez que contei já o havia assistido mais de 40 vezes. Foram inúmeras vezes que acorri ao Teatro Valdemar de Oliveira para assisti-lo. Em seguidas temporadas meu ingresso era sempre o ingresso para a cadeira A2 ou A1, a primeira cadeira do corredor da primeira fila. Fascinado assisti incansavelmente, ao ponto de saber falas decoradas, marcas decoradas, de saber quando um ator ou atriz errava ou improvisava. Vi diversas configurações de elenco. Fui assistir ao Amadores no Teatro de Santa Isabel, no Teatro do Parque, qualquer apresentação comemorativa, participação em festival, lá estava eu, mais uma vez. Meu sonho de ator iniciante era estar naquele cenário, fazendo parte daquela história. Inconscientemente era como se eu estivesse buscando um quinhão da herança da minha família, um pequeno galho da árvore que havia sido plantada há décadas com a ajuda de meu bisavô.

Posso até hoje fechar os olhos e dizer do início ao fim as marcações de cena, as inflexões de cada fala, as roupas de cada personagem, o lugar exato de cada móvel ou objeto de cena. Tudo está incrustrado na minha memória como marca do que sou. Mas, hoje são só lembranças. Lembranças que jamais se apagarão.

O TAP já praticamente não existe, o Teatro Valdemar de Oliveira está fechado, em condições lastimáveis, mas a história gloriosa do idealismo de Dr. Valdemar jamais deve ser esquecida. O texto de Luiz Marinho não pode ser esquecido. As criações geniais de Diná, de Reinaldo, de Vicentina, de Vanda Phaelante, de Clenira Melo, de Ivanildo Silva e de tantos outros que deram vida às personagens do texto não podem, não deve ser esquecidas.



[1] OLIVEIRA, Valdemar de. Mundo submerso: memórias. 3ª ed. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1985. p.148.

[2] A PEÇA DE LUIZ MARINHO FALCÃO, QUE ACABA DE SER PREMIADA (1º LUGAR) NO CONCURSO ANUAL PELA UNIÃO BRASILEIRA DE ESCRITORES, SECÇÃO [SIC] DE PERNAMBUCO, “UM SÁBADO EM 30”, SEGUNDO SE AFIRMA SERÁ MONTADA PELO TEATRO DE AMADORES DE PERNAMBUCO. Diario de Pernambuco, Recife, 23 de maio de 1963. Segundo Caderno, p.3.

[3] CADENGUE, Antonio Edson. TAP – sua cena & sua sombra: o Teatro de Amadores de Pernambuco (1941-1991). Recife: Cepe: SESC Pernambuco, 2011. v.2. p.98.

[4] Ibidem. p.96.

[5] MARINHO, Luiz. Apud TEATRO DE AMADORES DE PERNAMBUCO. Um Sábado em 30. Recife, 1963. Programa.

[6] VIEIRA, Anco Márcio Tenório. Luiz Marinho: o sábado que não entardece. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2004. p.100-101.

[7] PONTES, Joel. Diário Artístico. Diario de Pernambuco, Recife, 18 de jul. 1963. Segundo Caderno, p.1.

[8] MICHALSKI, Yan. Um velho álbum de família. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 06 de jul. 1976. Teatro.

[9] OLIVEIRA, Diná. Diario de Pernambuco, 1997.








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