diário, escritos, rascunhos, pulsações de uma vida quase completa

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O homem amarelo.

Ele tinha uma cor de mofo.
Assim, meio amarelado.
Talvez estivesse mais pra desbotado.
Seus olhos eram opacos.
Vivia com aquelas roupas velhas.
Farrapos, trapos jogados sobre o magro corpo.
Seus dentes fracos, careados.
O cabelo sem brilho, já grisalho.
Suas mãos eram grandes, de dedos longos.
Poderia ter sido pianista.
Seu cheiro era de flores.
Não de flores cheirosas, mas, de cravos de defunto.
Um cheiro abusado.
As pernas cansadas já não andavam tanto.
Os pés já não eram firmes.
Passos incertos.
Seu tom ocre esmaecido podia até ser belo.
Visto de longe, bem longe.
Ninguém gostava de ficar perto por muito tempo.
Alguns tinham náuseas, outros horror.
Não se encara o feio.
Tira a vista.
Olha para o outro lado.
Como olhar para o outro lado se o mundo é cruel?
Suas palavras, não sabíamos, eram sábias.
Mas, ditas por tal figura dantesca não eram acreditadas.
Morreu. Um dia. Como que de tão mofado se desfizesse.
Apenas restaram os trapos, os dentes, os ossos.
E um pequeno livro, pequeno mesmo.
Com folhas garranchadas à mão.
Do que se conseguiu decifrar, apenas uma frase guardei:
"O maior valor da vida é amar".
Era, sim, um sábio.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Berré.

Meu respeito, minha devoção.
A voz tão seca e grave.
Árvore crepitando na paisagem seca do sertão.
Eco supremo dos grandes nomes.
Meu sincero e devotado amor.
Sobre o mel derramado no país.
Meu ofício ouvir e acatar tudo.
Minha paixão primeira e maior.
Dona de todas as cenas e palcos.
Meu coração bruto e sertanejo.
Toques regionais do meu ser.
Maria, minha.
E de quem mais se dedicar.
Apenas isso.
Voz que preenche todo meu vazio.
Vazio de amor.
Timbre forte e marcante.
Minha atriz primeira.
Minha Adela nunca realizada.
Joana martirizada no morro.
Voz maior de um grande e extenso mundo.
A ti, todo meu ouvido entrego.
Acalenta-me em todas as horas.
Para todo o sempre.
Minha senhora completa.
Dona de mim.
Dona de um dom supremo.
Voz rascante, de grandes gestos.
Me guarda em teu canto
Hoje e sempre.
Amém.

*Para minha Bethânia, guerreira, guerrilha.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Hiato.

De tempos em tempos eu paro de escrever.
Mesmo com inúmeras e imensas palavras na cabeça.
Escrever é um ofício, uma sacerdócio.
Eu não sou escritor.
Nunca me propus a tal.
Apenas penso.
E por isso escreve.
Quando repenso não quero escrever.
Por me sentir pequeno.
Diante de tantos grandes.
Mas, mesmo assim insisto.
Imprimo minha cabeça no papel.
Tal como é.
E não me envergonho.
Digo.
Nos tempos em que paro sinto um vazio.
Uma falta.
Então retomo.
Sem grandes compromissos.
Apenas simples.
Os parâmetros mudam, os pensamentos, as convicções mudam.
Essa é a graça da vida.
Mutação.
Vontade e não vontade.
Os opostos que se complementam.
Hoje eu resolvi escrever.
Sobre escrever.
Sobre ser.
Viver.
Afinal, não sei escrever sobre outra coisa.
O que eu vivo, sinto, percebo, absorvo.
Hoje findou-se um tempo em que passei sem escrever.
Talvez, hoje mesmo, comece outro tempo de hiato.
Escrever, para mim, é assim mesmo.
Quando dá, quando quer, quando vem.
Surge.