diário, escritos, rascunhos, pulsações de uma vida quase completa

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Vermelho

Eu me lembro daqueles dias em que um cheiro nauseabundo tomava conta da casa. Eram dias em que o silêncio predominava naquela casa velha, de janelas altas e longos corredores. Tudo ficava em estado alerta, o silêncio era para evitar que as faíscas se agitassem e provocassem uma explosão.
Eu era tomado de um enorme asco por você e aquele maldito cheiro entrava pelas minhas narinas me deixando tonto, minhas náuseas eram constantes e agravavam-se nos momentos em que eu era obrigado a entrar naquele cômodo escuro da casa, ou por necessidades fisiológicas ou pela obrigação da higiene diária. Era o banheiro o foco daquele terrível odor e eu me via obrigado a ter que entrar ali, nossa casa era muito velha e nos tempos em que foi construída era regra se ter apenas um banheiro, eram os tempos do reinado do bidê. Os restos daquele vermelho sangue quando expelido pelo seu corpo exalavam um nauseante cheiro que se espalhava pela casa, se impregnava nas paredes, nos lençóis e martirizava-me o estômago.

Aqueles dias pareciam ser mais longos, o meu apetite sumia, ia passear do outro lado do mundo, talvez. Eu não conseguia sequer te olhar, embora isso já estivesse tornando uma rotina, nossa relação já estava deteriorada, sangrava como o seu útero, mas nesses dias a situação agravava-se, ao menor contado de pele, se por acaso esbarrássemos um no outro no estreito corredor, um arrepio tomava-me a espinha e eu era obrigado a respirar fundo e tentar lembrar que dentro de alguns dias tudo voltaria ao normal e aquela velha casa teria o seu cheiro de mofo e poeira. E o meu apetite retornaria de sua viagem ao Japão, o silêncio seria quebrado e nós retornaríamos a viver como se fossemos felizes. 

Cicatriz

Ouvia tudo. E todas aquelas letras de velhas canções lhe descreviam.
Vivia, só por estar no mundo.
Sem rumo e sem a vontade com que abriu os olhos para o mundo um dia.
Não era mais tão leve quanto fora.
Pesava, carregava nos ombros um fardo grande que era só seu.
Atirar-se de imensos precipícios sem temer as consequências de seu salto era sua profissão.
Não esperava redes de proteção.
Isso o mundo reservava aos covardes.
E coragem nunca lhe havia faltado.
Hoje era fraco e trôpego, por amar demasiado.
Definhava à olhos vistos e não se amargurava por isso.
Orgulhava-se de ter passado pela vida e ter sido marcado.
As cicatrizes muitos não enxergavam, mas estavam ali entranhadas no seu corpo.
E sabia contar de todas as histórias, com riqueza de detalhes.
Repassava-as diariamente, quando não à um ouvinte qualquer, à si próprio.
Não queria esquecê-las. E todas aquelas cicatrizes ainda lhe doíam.
Mas já estava acostumado.
A ferida mais nova, com suas carnes expostas, tratava com delicado carinho.
Pois um dia seria mais uma marca em si.
Uma marca do amor.
Da vida. Do seu despudor em amar, entregando ao ser amado tudo que seu corpo ainda guardava.