diário, escritos, rascunhos, pulsações de uma vida quase completa

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Mariana.

Ela nasceu numa noite de chuva. Seu pai, na sala, ouvia um disco antigo na radiola. Sua mãe, no quarto, gemia baixinho. As tias, todas reunidas em volta da mãe. Quem a trouxe à vida foi a avó, uma mulher forte, grande, parteira das boas. Nasceu silenciosa. Não chorou. Só quando a tia mais velha a pegou nos braços foi que percebeu que respirava. Respirava devagar, faquinha, franzina. Ninguém punha fé que se criava. Mas cresceu, não muito. Não puxou a família da mãe, saiu ao pai. Pequena, olhos grandes, braços finos, pernas curtas. Quando fez cinco anos, ganhou uma bruxa de pano. Tia Salviana foi quem deu. Disse-lhe:
- Este é seu presente. Uma bruxinha, feia como tu.
Não, não era só Tia Salviana que a achava feia. Era criada escondida, trancafiada em casa. Não brincava na rua, não conhecia outras crianças.
Sua mãe foi quem lhe ensinou o bê-a-bá. Só foi à escola depois dos nove anos. Lá todas as crianças não lhe tinham afeto. Tratavam-na com desprezo, pois era muito feia. Magra. Os cabelos muito negros, sempre presos. A farda estava sempre impecável, sentava-se com leveza, não podia amarrotar a saia azul-marinho.
Quando terminou o colégio não sabia o que queria ser. Suas tias diziam-lhe que deveria arrumar uma profissão, pois dificilmente conseguiria um marido.
No dia de seu aniversário de dezoito anos resolveu dar um passeio na praça, ficou lá, sentada em um banco, imóvel, parecia um desses bustos, tão comuns nas praças. Viu crianças brincando, mães passeando com seus filhos, ouviu o canto dos pássaros. De súbito sentiu-se vazia, triste. Lembrou da infância, das paredes do quarto, dos seus brinquedos, suas únicas companhias quando menina. Lembrou-se da boneca que ganhou da tia. Sem sentir, sem esforço uma lágrima correu-lhe peça face. Levou a mão ao rosto, enxugou-o. Permaneceu estática por um bom par de horas. Num ímpeto, levantou-se, correu até uma árvore e começou uma escalada apressada. Quando consegui alcançar o galho mais alto parou. Desde desse dia ninguém mais ouviu falar de Mariana. Virou lenda, sua mãe garante que a menina virou um passarinho. Suas tias acreditam que enlouqueceu e perambula pelo mundo sem rumo. Seu pai sentou-se em sua velha cadeira de balanço, ao lado da radiola, ali passa todos os dias, ouvindo aquele mesmo disco que ouvia no dia do nascimento da filha. Quando chove nas sextas-feira, todos se poem mudos dentro da casa. Esperando que se ouça novamente aquela respiração baixinha.

Um comentário:

AMARela Cavalcanti disse...

Recentemente descobri que as sereias eram metade mulher e metade pássaro. Quem sabe Mariana agora não é uma sereia e vive a cantar e encantar os outros com seu canto...