diário, escritos, rascunhos, pulsações de uma vida quase completa

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Somewhere.

Eu nasci no tempo da desordem e da loucura.
Mas em meio a esse caos me encontrei.
Vivi cercado de espelhos e luzes.
Mas não me via refletido.
Em um tempo fracionado, partido.
Eu vivi correndo num campo livre.
Atrás de montanhas altas.
Eu queria gritar.
Mas o eco não me respondia.
Muitas mãos, muitos pés.
Pessoas iam e vinham.
Nunca me tocaram.
Eu quis, eu quero.
Não sei mais.
As luzes brilham, cada vez mais.
Incessantemente.
Sucessivamente.
As pessoas não são mais as mesmas.
Eu, eu não sou mais o mesmo.
Em algum lugar, longe, distante léguas daqui.
Tem de haver um pote, cheio de outras coisas.
De outras vidas.
De histórias que não foram contadas.
Escritas em folhar antigas.
Personagens que nunca viveram.
E um dia viverão.
O céu, tão azul e altivo.
Pinceladas de tinta branca o mancham.
Minhas dúvidas derretem.
Como balas de açúcar.
Em algum lugar haverá uma mulher.
Cantando, correndo no palco, nos palcos.
Desafinando, como na vida.
Envelhecendo como vinho.
Haverá em algum lugar música.
Ouvidos apurados.
Tem de haver.
Senão de que adiantará tanto sofrer.
A vida haverá de ter um fim.
Um happy end.
Sei que um dia minha memória ficará branca.
Não saberei mais nada.
Nem quem fui.
Tenho medo.
Medo de perder o passado.
De esquecer o presente.
E não viver o futuro.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Sei, sabia.

A saudade é tão comum.
Mas, cada um que a sinta maior.
Eu tenho. E calo.
Abre a janela do mundo.
Vem ver quantos sofrem.
Eu sei. Silencio.
Quando amei?
Algum dia foi.
Sei que não amo. Mais.
Flores brotaram, no passado.
Morreram.
Outras nasceram.
Virou o tempo.
Fechou o tempo. Riscos.
Coriscos. Raios.
Chuva. Como em mim.
Cinza, escuro.
Triste e gélido.
A vida é como dizem.
Calei-me.
Para o todo sempre.
Não, amém.
Antes e futuramente.
Como dissonância eterna.
Foi. É. Será. Seria.
Sabia. Não mais sei.
Apenas.
Como o som dos saltos nos tacos.
No piso antigo de madeira.
A subida das escadas.
O ranger das tábuas.
Hoje não se ouve mais.
As portas batem ecoando pelas paredes.
Paredes que estão sem cores.
Brancas.
Pálidas.
A casa vazia.
O copo vazio. Derramado.
Fotografias rasgadas.
Cartas queimadas.
Silêncio.
Eu, sentado. No fundo deste cenário.
Esperando...

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Velha Menina Baiana.



Quando menina ela era careca, depois um fio de cabelo nasceu.
Jogava futebol, era meia esquerda. Fazia gol. Chamavam-na Pinóquio.
Por conta de seu adunco nariz. Como um bico de ave de rapina.
Tem nome de latifundiária baiana.
Mas é apenas baiana.
Um dia recebeu um recado para correr o Rio de Janeiro.
Queriam-na no lugar de Nara.
Mas, de Nova Iorque, recebeu uma chamada anterior.
Substituir Ella Fitzgerald. A menina fazia piadas.
Porreta.
Ela foi ao Rio, foi e não voltou, não voltou para a segunda época de matemática.
Passaram-se quase quarenta e cinco anos.
Hoje esta menina é uma senhora.
Com um longo cabelo, prateado, como uma velha índia.
Diz-se que esta índia vai longe.
Tira e bota no sol, como planta.
Uma encarnação de Orixá.
Senhora dominadora de muitos.
Pulso firme e forte.
Assim é.
Assim será.
Sob o sol escaldante do sertão.
Este carcará canta...
E cantará, muito ainda.


p.s.: à Maria, Bethânia, Berré, Abelha Rainha, pelos seus 63 anos de vida.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Mariana.

Ela nasceu numa noite de chuva. Seu pai, na sala, ouvia um disco antigo na radiola. Sua mãe, no quarto, gemia baixinho. As tias, todas reunidas em volta da mãe. Quem a trouxe à vida foi a avó, uma mulher forte, grande, parteira das boas. Nasceu silenciosa. Não chorou. Só quando a tia mais velha a pegou nos braços foi que percebeu que respirava. Respirava devagar, faquinha, franzina. Ninguém punha fé que se criava. Mas cresceu, não muito. Não puxou a família da mãe, saiu ao pai. Pequena, olhos grandes, braços finos, pernas curtas. Quando fez cinco anos, ganhou uma bruxa de pano. Tia Salviana foi quem deu. Disse-lhe:
- Este é seu presente. Uma bruxinha, feia como tu.
Não, não era só Tia Salviana que a achava feia. Era criada escondida, trancafiada em casa. Não brincava na rua, não conhecia outras crianças.
Sua mãe foi quem lhe ensinou o bê-a-bá. Só foi à escola depois dos nove anos. Lá todas as crianças não lhe tinham afeto. Tratavam-na com desprezo, pois era muito feia. Magra. Os cabelos muito negros, sempre presos. A farda estava sempre impecável, sentava-se com leveza, não podia amarrotar a saia azul-marinho.
Quando terminou o colégio não sabia o que queria ser. Suas tias diziam-lhe que deveria arrumar uma profissão, pois dificilmente conseguiria um marido.
No dia de seu aniversário de dezoito anos resolveu dar um passeio na praça, ficou lá, sentada em um banco, imóvel, parecia um desses bustos, tão comuns nas praças. Viu crianças brincando, mães passeando com seus filhos, ouviu o canto dos pássaros. De súbito sentiu-se vazia, triste. Lembrou da infância, das paredes do quarto, dos seus brinquedos, suas únicas companhias quando menina. Lembrou-se da boneca que ganhou da tia. Sem sentir, sem esforço uma lágrima correu-lhe peça face. Levou a mão ao rosto, enxugou-o. Permaneceu estática por um bom par de horas. Num ímpeto, levantou-se, correu até uma árvore e começou uma escalada apressada. Quando consegui alcançar o galho mais alto parou. Desde desse dia ninguém mais ouviu falar de Mariana. Virou lenda, sua mãe garante que a menina virou um passarinho. Suas tias acreditam que enlouqueceu e perambula pelo mundo sem rumo. Seu pai sentou-se em sua velha cadeira de balanço, ao lado da radiola, ali passa todos os dias, ouvindo aquele mesmo disco que ouvia no dia do nascimento da filha. Quando chove nas sextas-feira, todos se poem mudos dentro da casa. Esperando que se ouça novamente aquela respiração baixinha.